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   Obra  que trata reflexão sobre a real necessidade do ser humano do sonho através das artes, das religiões para se relacionar e os mitos para acreditar, desde sempre. VS constroe imagens que transitam na filosofia da existência humana e da natureza à morte. A exposição foi apresentada na Casa Andrade Muricy em Curitiba é composta pela série  ½  Blue,  DumpCake e Cores às cinzas

texto crítico

Mergulho no azul, Angélica de Moraes /2012

   A terra é azul, constatou o cosmonauta soviético Yuri Gagárin, em 1961. Muito antes disso, porém, na milenar religião hinduísta, as forças essenciais da natureza terrestre estão representadas na ambígua deusa azul, Kali. Uma imagem dessa entidade sagrada, captada na Índia por Vilma Slomp, é a chave para a percepção de toda a extensa mostra fotográfica que a artista realiza na Casa Andrade Muricy. Kali representa uma tríade vital: a criação, a preservação da vida e o seu fim. Algo que as culturas indígenas pré colombianas andinas denominam de Mãe Terra, ou Pacha Mama, mito que também simboliza o tempo que cura as dores, controla as estações e fecunda a terra.

   “Penso diariamente na morte como forma de valorizar a vida e o instante que vivo”, observa Vilma. Os ciclos essenciais do estar no mundo são o eixo deste conjunto de imagens, selecionadas da produção dos últimos cinco anos da prolífica autora. Um olhar que persegue os rastros de luz nas coisas, a memória de existências aderidas aos objetos e as sutilezas de intuir como o essencial pode existir nas coisas mais banais.

   Uma imagem emblemática desse modo de reunir imagens está na fotografia da pilha de baús e caixas: todas sem cadeados, mas com as marcas de que já os tiveram, no passado. Algo assim como observar, na maturidade, que nossas memórias só têm significado se compartilhadas. Algo assim como ouvir um blues que arranca nossa alma pelos pés e ainda achar que tudo valeu a pena. Viajante frequente por dever de ofício e curiosidade de horizontes diversos para suas lentes, Vilma Slomp não abre mão da qualidade técnica impecável no registro da luz. Já tive oportunidade, em textos anteriores (1) de demonstrar a proximidade estética desses trabalhos com a pintura holandesa dos séculos XV e XVI, pela delicadeza de nuances de cor que consegue extrair de ambientes internos, assim como de temas pictóricos clássicos como o retrato e a natureza-morta. Na mesma ocasião, já aludi aos tons veludosos de suas belas  fotos preto e branco, de voltagem visual semelhante à técnica da maneira negra na gravura em metal. Tudo isso ganha novas ressonâncias e acréscimos nos trabalhos agora exibidos.

   Embora a maior parte destas fotografias tenha sido feita em espaços abertos, longe do estúdio onde pode controlar milimetricamente a intensidade da iluminação desejada, a artista consegue estabelecer uma atmosfera igualmente sutil, tramando infinitos brancos, cinzas e pretos. “O acaso é meu aliado”, afirma. Sabemos, porém, que o acaso só é percebido por quem está de tocaia a ele no momento a sua frente. Foi assim que descobriu em Havana o par de cadeiras desgastadas pelas intempéries que, frente a frente, continuam, ainda e sempre, a dialogar. Ou o menino indiano, abandonado confiantemente ao sono da completa exaustão, deitado sobre o fardo vazio da tarefa já cumprida. Ou, ainda, o exato instante em que um garoto mergulha e produz na superfície líquida um túnel de passagem. Água azul, símbolo da vida. Vida que continua e pode ser prazerosa e refrescante como um mergulho de verão.

Azul é também o pigmento que o hindu distribui em um dos círculos coloridos em torno da árvore, outro signo vital. Vilma Slomp, após várias décadas de trajetória, continua impregnando sua obra de essencialidades e nos fazendo refletir sobre o grão de eternidade que habita o transitório. Desse mergulho em seus baús nos trouxe uma visão refrescante e vital.

   (1) Holanda em Curitiba/1993 e Olhar Interior/1998,  do livro Dor

 

Angélica de Moraes /2012

 VILMA SLOMP